quinta-feira, 27 de maio de 2010

Carta - 3º Ano

Prezados Senhores,


Uns amigos me falaram que os senhores estão para destruir 45 mil pares de tênis falsificados com a marca Nike e que, para esse fim, uma máquina especial já teria até sido adquirida. A razão desta cartinha é um pedido. Um pedido muito urgente.
Antes de mais nada, devo dizer aos senhores que nada tenho contra a destruição de tênis, ou de bonecas Barbie, ou de qualquer coisa que tenha sido pirateada. Afinal, a marca é dos senhores, e quem usa essa marca indevidamente sabe que está correndo um risco. Destruam, portanto. Com a máquina, sem a máquina, destruam. Destruir é um direito dos senhores. Mas, por favor, reservem um par, um único par desses tênis que serão destruídos para este que vos escreve. Este pedido é motivado por duas razões: em primeiro lugar, sou um grande admirador da marca Nike, mesmo falsificada. Aliás, estive olhando os tênis pirateados e devo confessar que não vi grande diferença deles para os verdadeiros.
Em segundo lugar, e isto é o mais importante, sou pobre, pobre e ignorante. Quem está escrevendo esta carta para mim é um vizinho, homem bondoso. Ele vai inclusive colocá-la no correio, porque eu não tenho dinheiro para o selo. Nem dinheiro para selo, nem para qualquer outra coisa: sou pobre como um rato. Mas a pobreza não impede de sonhar, e eu sempre sonhei com um tênis Nike. Os senhores não têm idéia de como isso será importante para mim. Meus amigos, por exemplo, vão me olhar de outra maneira se eu aparecer de Nike. Eu direi, naturalmente, que foi presente (não quero que pensem que andei roubando), mas sei que a admiração deles não diminuirá: afinal, quem pode receber um Nike de presente pode receber muitas outras coisas. Verão que não sou o coitado que pareço.
Uma última ponderação: a mim não importa que o tênis seja falsificado, que ele leve a marca Nike sem ser Nike. Porque, vejam, tudo em minha vida é assim. Moro num barraco que não pode ser chamado de casa, mas, para todos os efeitos, chamo-o de casa. Uso a camiseta de uma universidade americana, com dizeres em inglês, que não entendo, mas nunca estive nem sequer perto da universidade – é uma camiseta que encontrei no lixo. E assim por diante. Mandem-me, por favor, um tênis. Pode ser tamanho grande, embora eu tenha pé pequeno. Não me desagradaria nada fingir que tenho pé grande. Dá à pessoa uma certa importância. E depois, quanto maior o tênis, mais visível ele é. E, como diz o meu vizinho aqui, visibilidade é tudo na vida.


Moacyr Scliar

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Paratodos

Sabe, não restrinjo amizade: tenho amigos dos mais novos aos mais velhos. Em todos eles enxergo aquilo que, em mim, me salva do que tenho de pior. Creio em cada um feito quem ora, abraço-os como quem adentra um templo.

Nos mais velhos, vejo como é boa a alegria da infância, sábia que só. Que são os meus amigos mais velhos aqueles que mais se mostram dispostos a rir comigo, de mim, para mim; como se a maturidade viesse para ensinar a volta pra casa, um andar em linha reta que revela, doravante, o começo – já tão diferente, não pelo caminho, mas por quem nele se prolonga.

Dos mais novos, percebo como é belo o erro e o direito de tentar de novo. Sempre preferi os errados, falha de caráter, vai saber. Admirá-los crescer é perceber o quanto suas maiores besteiras insistem em desaguar naquilo que hoje guardam de mais sublime e belo. Meus amigos mais novos espelham em cravos, curvas e palavrões a responsabilidade que insisto em acreditar não ter. Que insisto em acreditar que não têm comigo.

È fato. Vivemos as pessoas que amamos. Cuidar dos nossos é mais que altruísmo – sentimento feio, desses que se julgam mais. É, na verdade, perceber-se pequeno e dizer em gesto ‘olha, preciso de você’, ‘olha, toma o que é teu’.

Vai ver é por tudo isso que não consigo enxergar relações funcionais. Não somos cargos e papéis, postura e fingimento. Somos homens e mulheres, todos tão carentes de carinho, que se vestem de roupa, mentira e dúvida só pra se esconder da vida. De tudo que a vida dá.

Quem sabe é a lua, não sei. Só queria dizer que tudo o que construímos – todo dia – é tão importante! Pois, olha, “eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar de remar também”. É de um cara chamado Caio Fernando Abreu, mas poderia ser da gente.